ALFABETIZAÇÃO DURANTE A PANDEMIA
ENTREVISTA 06
Olá!
Na entrevista de hoje, trago as percepções da professora Cristiana, que atua em uma escola pública em Gravataí e percebe, através do feedback dos estudantes e suas famílias, que a empatia dos pais em relação à dificuldade do trabalho dos professores aumentou em virtude do maior tempo que passam auxiliando seus filhos nos estudos.
Ce: Qual o seu nome*, escola* e ano para o qual leciona:
Cristiana: Professora Cristina ,EMEF, 3º ano.
Ce: Qual o perfil dos estudantes da turma?
Cristiana: São estudantes de classe socioeconômica D e E. é uma turma bastante agitada, com 20 alunos, sendo 13 meninas e 7 meninos. Temos 2 alunos de inclusão com laudo ( TEA e CID10-F71) e 4 sob investigação , sendo que estavam em andamento e por conta da pandemia muitos processos foram protelados. Trata-se de um 3 ano com apenas 12 alunos alfabetizados, sendo 8 desses com fluência e não apenas decodificação.
A maioria estuda junto desde o pré 2 na escola e se conhecem bem. Nesta turma temos 4 repetentes, sendo que ano passado haviam duas turmas de 3º ano que se tornaram uma só, que é esta. Veio portanto dois alunos de cada uma daquelas turmas, que precisaram de mais um ano para atingir as competências deste ano, dentre elas ler e escrever.
Ce: Você já conhecia os estudantes antes do início deste ano?
Cristiana: Somente por comentários da professora do ano anterior e de vê-los no pátio da escola e em confraternizações, apresentações, etc.
Ce: Fale um pouco sobre sua metodologia de ensino à distância:
Cristiana: As crianças têm recebido as atividades na escola, em datas estipuladas, onde pode ir apenas um responsável seguindo os protocolos de cuidados (máscara, distanciamento, etc.).Entrego as atividades e no mesmo horário condizente com as aulas na escola eu atendo os alunos pelo celular, via Whatssap. Por ali, todos os dias eu os cumprimento, realizo mensagens de incentivos e tiro dúvidas a respeito das atividades que eles já, nesse momento têm em mãos). Fico feliz por ter conseguido através desse sistema dar uma atenção em particular aos que ainda não haviam se alfabetizado. 3 deles começaram a ler com entusiasmo e motivados estão avançando.
Envio vídeos com histórias, explicações, conto por ligação aos que não têm a rede social (são 2 alunos) e nos organizamos assim. Também é importante ressaltar que algumas famílias sentem vergonha de colocar no grupo suas atividades que são registrada por fotos (exemplo: jogos, advinhas, atividades físicas, etc.) Nesses casos, no horário de aula, eles enviam em particular.
Também há os pais que precisam de atendimento de noite. E eu preciso compreender, que a criança estaria em aula das 13h as 17h e esses pais só poderiam realizar atividades quando retornam do trabalho para suas casas, portanto, me disponibilizo a atende-los.
Ce: Se sua turma possui perfis muito distintos (crianças que já chegaram alfabetizadas, semi alfabetizadas e não alfabetizadas), como você lida com essa diversidade cognitiva?
Cristiana: De início, fomos orientados a entregar atividades que correspondiam ao ano anterior, visto que estávamos apenas no começo do ano quando a Pandemia chegou, ou seja, não foi autorizado avançar. E fomos orientados a entregar a mesma atividade a todos, que fosse possível ser entregue de forma física e de forma digital.
Para os que vieram com maior dificuldade, realizo atendimento particular pelo telefone pedindo a observação dos pontos em que erraram e vamos lendo e reorganizando, pois os erros nos ensinam muito.
Ce: Você consegue perceber, à distância, quais habilidades se destacam em cada estudante?
Cristiana: Bem, após a terceira entrega de atividades, podemos avançar um conteúdo , e essas atividades vão retornar agora. A maioria viu os vídeos e conseguiu realizar, trata-se de Medidas de comprimento e Sinais de pontuação.
Entretanto, percebo sim, que aqueles estudantes que eram mais dispersos na atenção, se viram mais cobrados por seus pais e esses por sua vez viram os comportamentos de seus filhos e estão se surpreendendo. Acredito ter observado habilidades organizacionais, de leitura digital, de escrita digital, de criação de vídeos, de expressões orais de seus sentimentos, valorização da escola, do espaço e da rotina dentro da vida. E por que não, habilidade dos próprios pais em perceberem o papel da escola nisso tudo.
Ce: Você considera viável focar no que cada criança tem mais aptidão? Por quê?
Cristiana: Considero viável a criança perceber isso , utilizarmos isso, mas principalmente ela saber que é junto com as demais aptidões que o todo se forma. Por exemplo, tenho um aluno músico, mas com problemas sérios de disciplina. Tenho uma aluna que todos gostam por seu carisma e altruísmo, mas ela tem sérias dificuldades de leitura. Os dois alunos em sala de aula se dão muito bem. Ela neutraliza o lado “indisciplinado” dele. E ele . rápido na escrita e leitura a incentiva a ler e escrever, inclusive pelo Whatssap, pois se falam.
Nesse caso e em muitos outros a aptidão é bem vinda. Mas, a Educação contempla o todo e esse todo precisa ser oportunizado. Portanto, aquele aluno com aptidão matemática, precisa ser estimulado na Língua portuguesa, Geografia, Ciências, etc... Visto que os conhecimentos se conectam a todo momento. Portanto, é viável focar nas aptidões, mas não acontecerá sempre.
Ce: Quais são os seus critérios de avaliação cognitiva no contexto atual?
Cristiana: Meus critérios são a descrição das participações, análise do comprometimento, a própria correção das atividades que retornam e se este aluno avança do seu ponto de partida. Eu anoto tudo que acontece, ligo para saber como estão, proponho montagem de vídeos e estou sempre atenta ao silêncio. Pois, é algo nunca vivido anteriormente e pelo mundo todo, eu mesmo estou aprendendo demais com tudo isso.
Ce: Você consegue perceber nos estudantes, neste contexto, o desejo de aprender a ler? Fale um pouco mais sobre isso.
Cristiana: Sim. A tecnologia, embora alguns professores resistam, para os alunos é muito bem vinda. Eles se sentem mais livres para se expressar e me surpreenderam o dia em que eu disse que não queria áudios, queria vê-los escrever nas mensagens. Eles pediram que eu escrevesse em letra bastão e nossa comunicação aconteceu, com os mesmos erros ortográficos que teriam em sala de aula, mas todos os alunos participaram.
Ce: Você conta com o apoio dos pais neste desafio de ensinar à distância?
Cristiana: Muito. É deles que vem toda a organização em casa, a cobrança e envolvimento. Sem a participação dos pais é impossível.
Ce: O que você sabe sobre o desenvolvimento emocional dos seus alunos?
Cristiana: São extremamente sensíveis e agem de forma diferente ao que está acontecendo. A maioria é consciente e se cuida, mas há uma minoria descrente da doença e que age como se não houvesse nada. São comportamentos de defesa eu acredito. Não acreditar os faz , no pensamento deles, passar por tudo isso mais rápido. Já os que acreditam, se mostram ansiosos, mandam mensagens de saudade e de angústia pela volta da normalidade.
A turma é muito afetiva, e sinto que esse é o caminho. Quando percebo que estão se distanciando, monto vídeos deles, mando mensagens com montagens e trago de volta. É emocionante.
Ce: Você consegue perceber, à distância, se seus alunos estão emocionalmente prontos para as atividades propostas?
Cristiana: Sim. Sei que com 4 alunos terei que retomar, pois demonstram desinteresse por realizar as atividades e embrabecem com seus pais. Pois, para eles é na escola a aula e não em casa. Percebo, que a maioria não está totalmente pronta , mas realiza as atividades propostas. Acredito que ninguém estava pronto para isso, na verdade. Mas a maioria se adaptou com o passar do tempo. E fico feliz que alguns sejam sinceros e demonstrem o que sentem, isso também é valioso, só assim depois eu terei os dados necessários para retomar e dialogar.
Ce: Você já participou de algum treinamento sobre múltiplas inteligências ou inteligência emocional? Gostaria de aprender mais sobre isso?
Cristiana: Somente na faculdade, no 3º semestre, em 2015. Foi apenas 4 horas, mas precisava mais. Sim, tenho interesse.
Ce: Você se sente cobrada/pressionada pela gestão da sua escola em relação aos resultados dos estudantes?
Cristiana: Não. Na verdade tivemos reuniões on-line e muito diálogo sobre a importância da participação mais do que os resultados em si. Fomos orientados a manter o vínculo com os alunos e avançar conforme nos sentíamos à vontade com isso. Como se trata de algo novo, e as crianças receberam por meio físico e são orientadas, as metas estão sendo cumpridas dentro desse contexto de Pandemia. E já houve uma reorganização por parte da Secretaria de Educação para que isso tudo seja somado e dentro de um novo cronograma esse ano seja concluído. Sinto-me segura de que as coisas irão se organizar.
Ce: Você se sente cobrada/pressionada pelas famílias em relação ao seu trabalho?
Cristiana: Sim. As famílias cobram o avanço das atividades e a volta para a escola. Bem como pressionam que eu avance mais, pensando em seus filhos e não no todo. Principalmente com a orientação de enviar as mesmas atividades a todos, pois os alunos mais avançados queriam ir além.
Ce: Você sente algum tipo de medo ou desconforto em relação ao seu trabalho?
Cristiana: Eu sinto medo de ser incompetente e desconforto por saber que nem todos os alunos têm o mesmo acesso. Esse medo tem a ver com a cobrança que faço a mim mesma, pois quero que meus alunos aprendam , mas ao mesmo tempo sei que é um período de cuidados e a prioridade é a saúde.
Tenho medo maior de ficar com essa doença. Vem vários pensamentos na verdade, a vontade de voltar, mas o medo de ficar doente e em saber que a maioria dos alunos ficam com os avós (grupo de risco) no turno inverso à escola ou aguardando os pais chegarem.
Ce: Que aprendizado você está tendo com essa experiência de educar à distância?
Cristiana: Que eu preciso me atualizar quanto às metodologias de ensino à distância, inclusive iniciei Pós graduação. Que s escola é fundamental em aspectos sociais, de rotina, socialização e organização. Que a saúde e Educação são áreas que precisam de enorme atenção, principalmente em seus suportes tecnológicos e valorização da Ciência.
Que Educar e aprender à distância é para quem tem perfil e suporte de recursos. E muitas vezes se tem um e não se tem o outro.
(* resposta opcional)
Quero agradecer a participação da professora neste trabalho sobre a alfabetização em meio à pandemia.
Uma grande abraço!